Home > Destaques > Food for health: o direito da saúde é o direito de viver vidas saudáveis

De Manlio Masucci, Navdanya International

* “É tempo de agir”, diz Vandana Shiva, que reúne especialistas de todo o mundo para realizar um Manifesto que irá fornecer ferramentas básicas para aclamar o direito de comida saudável a agricultores, consumidores, ativistas e a organizações da sociedade civil. O título da publicação “Food for Health” tem-se tornado o título chave para uma campanha internacional, que reúne movimentos ambientais e cientistas de todo o mundo, com o objetivo de estimular a necessária mudança de paradigma para o bem-estar do planeta e de todos os seres vivos.

A necessidade de uma campanha informativa e de um plano de ação a nível global acerca dos efeitos negativos da produção industrial de comida no meio ambiente e na nossa saúde, está patente em anos de estudos, análises e comparações que não deixam espaço para dúvidas. O atual modelo de produção, baseado na agricultura industrial com o uso de grandes quantidades de químicos e a distribuição em massa, falhou a nível dos seus objetivos sociais, culturais e laborais. Este contribui, decididamente, para a poluição do solo e das águas do subsolo ao lançar um nível significativo de poluentes no ambiente, e assim, também contribui para as alterações climáticas e para a perda da biodiversidade. A comida produzida por este modelo, que é colocada no Mercado, também tem um baixo nível nutricional, tal como é potencialmente tóxica. O consume de comida industrial aumenta o risco de doença, o que, por sua vez, tem um enorme impacto nos orçamentos dos sistemas de saúde pública a nível global.

A ironia trágica é que são os contribuintes que estão a arcar com os reais custos deste modelo de produção, que depende muito nos fundos públicos para continuar o seu funcionamento. De facto, tanto o dinheiro necessário para pagar subsídios a companhias de negócio agrícola, como os custos do dano ambiental e na saúde pública são retirados do bolso dos contribuintes que, entretanto, estão sob a ilusão de que se continuarem a comprar comida barata nos supermercados que estão a poupar dinheiro na comida que consumem regularmente.

A saúde do planeta e a saúde das pessoas são uma coisa só” relembra Vandana Shiva. Está na hora de ultrapassar os paradigmas reducionistas e mecânicos na base dos nossos modelos de produção de agricultura e de comida, e recuperar as conexões essenciais e necessárias para a nossa sobrevivência e para o nosso bem-estar. A conexão entre comida e saúde representa precisamente uma daquelas conexões que necessitam de ser reconstruídas. Os autores do Manifesto apresentaram evidências científicas nos seus respetivos campos de especialização e chegaram à seguinte conclusão: a produção e consume de comida industrial está relacionada com um grande leque de doenças e défices nutritivos. Isto aplica-se, em particular, aquilo que se intitula comummente como “doenças não comunicáveis” (DNC), que atualmente não causa menos do que 70% de mortes a nível global, um total de 40 milhões de mortes por ano, das quais 15 milhões são pessoas abaixo dos 70 anos de idade. Não obstante o facto que emergências de saúde, pandemias oncológicas, e doenças degenerativas, tais como Parkinson e Alzheimer são interpretadas várias vezes como casos de azar, estas doenças estão claramente associadas aos hábitos alimentares das pessoas. Será ignorar a influência de fatores ambientais na nossa saúde uma simples distração? Não, tendo em conta que os interesses económicos por trás do Sistema de produção industrial de comida.

O objetivo do Manifesto é assim analisar e conectar o estado da saúde no nosso planeta com a saúde das pessoas, identificando o maior fator de risco que necessita urgentemente de ser corrigido, enquanto que consciencializa o facto que estamos a enfrentar desafios sistémicos da época.

De facto, os riscos na saúde das pessoas devem ser analisados no contexto do atual Sistema económico industrial, que coloca interesses privados no centro, e os interesses do bem comum em Segundo lugar. Este Sistema extrativo ignora os valores democráticos e tem como objetivo maximizar os lucros ao aplicar os reais custos aos cidadãos. Assim, a reconstrução do conhecimento de um Sistema desintegrado, através da conexão do conhecimento tradicional com novas tecnologias, é o ponto de partida do Manifesto, que sugere possíveis alternativas potenciais e imediatas. A defesa da biodiversidade, do apoio a economias locais e a produção rural a 0 km, a recuperação de culturas e conhecimento cultural, o renascimento da agroecologia e do uso ético de novas tecnologias são algumas das soluções propostas no Manifesto.

A evidência relevada por estes dados requere que alguém que se encontra preocupado com o presente e o future do planeta, tal como os seus habitantes, deve mobilizar e exigir que o governo tome mudanças radicais nos sistemas económicos, de produção e de distribuição. O Manifeste “Food for Health” tem como objetivo servir como ferramenta de referência para relançar e reclamar os direitos do planeta e de todos os seres vivos, para transformar os sistemas de produção de comida que são responsáveis pela atual degradação ambiental e da saúde em sistemas saudáveis capazes de gerar bem-estar. Tal como afirmou Vincenzo Migaleddu, antigo presidente da ISDE Sardinia (International Society of Doctors for the Environmente) : “o direito à saúde é o direito a uma vida saudável, não o direito a ser curado.”

Um Sistema económico danificado

Há algo de profundamente errado com o sistema económico baseado no mantra de aumentar a produção a todo o custo, não só falha no alcance ao seu resultado prometido, como também produz efeitos laterais de severidade sem precedentes, os custos do qual é extraído ao governo e aos seus contribuintes. A Revolução Verde tinha como objetivo resolver o problema global da comida através da industrialização do setor agrícola, mas esta foi uma promessa não cumprida. Agora, estas não são só as palavras de organizações da sociedade civil, mas também do FAO, que há uns anos agiu como um dos maiores proponentes da Revolução Verde.

A evidência é clara aos olhos de todos, incluindo do Diretor Geral da FAO, Graziano Da Silva, que encerrou o recente o Colóquio sobre Agroecologia em Roma, dizendo que, “Chegamos ao limite do paradigma da Revolução Verde”, e que, “Não podemos continuar a produzir comida da forma que temos feito, dependendo de técnicas intensivas agrícolas, aplicação de químicos e mecânica, e necessitamos de mudar para uma abordagem mais holística na sustentabilidade.” De acordo com o Diretor Geral do FAO, a Revolução Verde não foi capaz de resolver o problema global da fome, sendo que em 2016, 815 milhões de pessoas ainda sofrem com a fome globalmente. Esta figura é acompanhada por dois pontos importantes: no mesmo ano, quase dois biliões de pessoas encontravam-se acima do peso médio, enquanto que 650 milhões eram obesas. O mantra da produtividade a todo o custo, enfatizou Graziano Da Silva, veio com um custo insustentável do ponto de vista ambiental, devido ao uso excessivo de fertilizantes químicos e pesticidas que contribuíram para a contaminação do solo, para a poluição das águas subterrâneas, e a perda de biodiversidade.

É então claro que o problema vai além dos dados de produção, tendo em consideração que a maioria da comida que comemos ainda é produzida em quintas pequenas ou de tamanho médio, enquanto que a maioria dos cultivos industriais, tais como milho e soja, são usados maioritariamente para alimentar animais ou para produzir biocombustíveis.

A Globalização Económica e a industrialização assim não resolveram o problema da fome no mundo, até aumentaram significativamente o desperdício. Tal como confirmado pela FAO, cerca de um quarto da comida produzida, 1.3 biliões de toneladas, é perdido ao longo das cadeias de produção.

O aumento implacável da produção, muito em detrimento do ambiente e da qualidade alimentar, não só falhou em resolver os problemas existentes, como também criou novos. É obvio que o real problema ronda a distribuição e o acesso a comida, tal como evidencia Nadia El Hage, investigadora na FAO e uma das autoras do Manifesto. O “Real Problema”, explica El Hage, “é que as pessoas não têm acesso aos recursos, eles têm de comprar ou produzir comida: na Ásia, por exemplo, existe comida suficiente para a população toda – e os países asiáticos ainda exporta comida – ainda assim tem muitas pessoas que passam fome. Temos de reconhecer que existe um problema de justiça no Sistema alimentar.

O Manifesto “Food for Health” vai mais longe, ao desafiar diretamente as multinacionais de negócios agrícolas com o objetivo de conquistar mais e mais terra arável. O seu objetivo é aumentar a produção e estender o seu controlo sobre o setor Agrícola através da aquisição de sementes patenteadas, um monopólio de cultivos e controlo de preços. Um modelo extrativo onde a comida deixa de ser a herança humana, mas passa a ser uma comodidade ou uma ferramenta cujo objetivo é criar monopólios que não têm em conta os valores nutricionais, culturais e sociais da comida. Investigações recentes, conhecidas como “Monsanto Papers” e “Poison Papers” trouxeram à ribalta estratégias implementadas pela maioria dos grupos agroquímicos para expandir os seus impérios: desde ações de pressão, de interferências em procedimentos de agências governamentais, de megafusões e aquisições, e, para findar com as instituições – ataques direcionados contra a ciência independente.

Isto não poderia ser feito de outra forma, tendo em conta a evidente insustentabilidade do modelo de agricultura industrializada, que já não pode esconder os reais custos no ambiente e na sociedade. A produção Agrícola industrializada requere grandes níveis de energia e contribui significativamente para a alteração climática ao ter associada a si 29% da libertação de gás efeito estufa para a atmosfera. Agricultura industrializada intensiva e extremamente poluidora, o que cobre 70% de terra agrícola e 30% de superfície total da área do planeta, também é tida em conta. O uso de fertilizantes e pesticidas também está a causar efeitos laterias extremamente caros. O uso de químicos está a privar o solo dos seis nutrientes naturais, enquanto no mínimo 210 novas espécies de superervas foram criadas sendo resistente a herbicidas.

Quais são, então, os reais custos deste Sistema de produção global – os custos que não vemos nos recibos quando finalizamos as compras no supermercado? O grupo de especialistas que criaram o Manifesto comparam alguns dos mais importantes dados de todo o mundo e chegaram a uma conclusão: mesmo de um ponto de vista económico, o atual Sistema produtivo – baseado na agricultara industrializada – não é sustentável. Por exemplo, no USA, um dos maiores consumidores de produtos agrotóxicos do mundo, os custos ambientais e de saúde pública resultantes do uso de pesticidas nos anos 90 correspondeu a 8.1 milhões de dólares por ano, comparado a uma expedição anual de 4 biliões para a compra de químicos agrícolas. Resumindo, para cada dólar gasto a comprar pesticidas, mais dois dólares foram gastos para lidar com os gastos causados pelo seu uso. Esta estimativa é similar aos resultados de um inquérito, publicado no Brasil em 2012, sobre os casos de envenenamento agudo por pesticidas no estado do Paraná. O total de custos de saúde para o estado Brasileiro correspondeu a 149 milhões de dólares cada ano, significando uma despesa de 1,28 dólares para cada dólar gasto na compra de pesticidas.

No que concerne a Europa, o dano causado pelos pesticidas custou à saúde pública perto de 190 biliões de euros. Mas isto é uma estimativa conservadora, considerando que apenas défices cognitivos, que são efeitos secundários da exposição a pesticidas organofosforado, são tidos em conta e que nem todos os países da UE estão alinhados nas suas avaliações. Este é o caso da França que em 2012 reconheceu a ligação entre a doença Parkinson e a exposição a pesticidas. A ligação foi confirmada por um estudo recente da Universidade Canadiana de Guelph, que classificou a doença como uma doença ocupacional que afeta agricultores.

Esta é uma conta parcial, mas já indecente que as multinacionais nos colocam diretamente à entrada da porta, preferindo, entretanto, calcular os milhões de dividendos que acumularam ao roubar os recursos do planeta. Estamos a falar de enormes danos que iriam tornar o modelo de produção industrial insustentável se os custos não fossem sistematicamente extraídos.

Obviamente, quando compramos nos supermercados, os altos custos ambientais e de saúde humana não estão refletidos nos preços, alimentando a ilusão de que estamos a poupar dinheiro. Enquanto que atualmente, a agricultura industrializada está a gerar fortunas para companhias de manufatura e os seus acionistas e com certeza não para o planeta e os seus habitantes.

O setor industrial Agrícola pode ser definido como um dos principais atores de “globalização predatória” que prefere ser baseada na eficiência capital, no lugar do bem-estar das pessoas. Em primeiro lugar, isto é um problema politico, considerando que a comida industrial é produzida a elevados custos, devido aos subsídios públicos, e é vendida internacionalmente através daquilo que é conhecido como “tratados de troca gratuitos”. Os comércios locais, cheios de comida barata e pouco nutricional, perdem os seus fornecedores e agricultores que, sob a pressão de um Sistema de produção artificial, são forçados a abandonar as suas terras.

Esta é a corda que aperta cada vez mais nos pescoços dos agricultores que, confrontados com os interesses dos grandes agronegócios, deixam de estar em posição de produzir comida saudável, consequentemente deixam os consumidores sem possibilidade de escolher a sua nutrição.

Danificar a biodiversidade significa causar danos a nós próprios

De forma a perceber o quão prejudicial é o sistema de produção industrial da agricultura na saúde das pessoas, é essencial fazer referência ao conceito que inspirou a realização do Manifesto. A saúde das pessoas e a saúde do planeta tem de ser considerada como uma só. Seres humanos não podem e não devem pensar em si mesmos como uma espécie separada, devendo respeitar o planeta em que vivem. Este conhecimento antigo já era tido pelos Gregos, como demonstrado pelo Maxim de Hippocrates, o médico mais famoso da história, que convidou os seus pacientes a considerarem a alimentação como o verdadeiro e único remédio. Também foi encontrado um estudo centrado em alimentação em Ayurveda, a ciência (Veda) da vida (Ayur).

Agricultores indianos têm praticado agricultura ecológica há 10,000 anos, baseada na proteção dos solos, na intensificação da biodiversidade e da “Lei do Retorno”. Estas práticas antigas eram baseadas em múltiplos princípios científicos e ecológicos que confirmavam as leis da natureza e do bem-estar social.

Este conhecimento – adquirido ao longo de milhares de anos – não preveniu, contudo, a imposição de um modelo de produção baseado em princípios diretamente opostos. No que toca à exposição do dano que um sistema produtivo industrial baseado em monoculturas intensivas gera na biodiversidade do planeta, é necessário perceber até que ponto os seres humanos são parte da biodiversidade e quais os riscos que correm. Não é coincidência que cada vez mais investigadores se estão a focar na relação entre a perda de biodiversidade e o aumento de doenças inflamatórias. O declínio da capacidade do nosso sistema imunitário de funcionar prosperamente está associado ao estado de saúde do nosso microbioma, que é o sistema de bactérias, vírus, fungos, fermento e protozoários que fazem parte dos nossos intestinos. Também denominados pelos cientistas de “segundo cérebro”. Este executa um número importante de funções que contribuem significativamente para a saúde do nosso sistema imunitário. Um mal funcionamento do microbioma, ou a sua falta de diversidade, implica maiores riscos de desenvolver vários transtornos neuropsiquiátricos, tais como depressão, esquizofrenia, autismo, ansiedade. Além disto, pesquisas recentes confirmaram que a composição e diversidade do microbioma é muito importante na determinação da imunidade anti tumor. O facto de que o microbioma humano está em perigo é confirmado pela prática, que está a ser rapidamente difundida em círculos medicinais: conhecida por transplantação de fezes, cujo objetivo é introduzir um microbioma saudável num paciente cujo microbioma já não está funcional.

Assim, a importância do microbioma para a saúde humana está estabelecida, mas como cultivamos um microbioma saudável? A boa notícia é que somos responsáveis pela boa saúde do nosso microbioma, que não é herdado geneticamente, mas é sim afetado na sua formação por fatores ambientais. Essa é a razão pela qual os investigadores concordarem com a afirmação de que a diversidade alimentar é de uma importância crucial para um microbioma saudável.

Infelizmente, é precisamente neste ponto que surge a má notícia. As dietas modernas “impostas pelo mercado” estão de facto carregadas de ingredientes que não são saudáveis, tais como açúcares e gorduras, enquanto que a diversidade parece ser excluída pelo processo de estandardização que, mais uma vez, trabalha nos interesses do mercado no lugar da saúde do consumidor. Tal como Salvadore Ceccarelli, especialista internacional em Agronomia e Genética de Plantas, e um dos autores do Manifesto, explica: “Como conseguiremos uma nutrição baseada em diversidade, se 60% das nossas calorias derivam apenas de três espécies de plantas, por exemplo, aveia, arroz e milho? E como conseguiremos uma nutrição baseada em diversidade se quase toda a comida que ingerimos é produzida por variadas sementes que, de forma a serem legalmente trocadas, devem ser registadas num catálogo que se chama “registo de variedades” e que, de forma a ser incluído neste registo, deve ser uniforme, estável e reconhecível? Entre a necessidade de comer alimentos “diversos” explicados até agora, e a uniformidade de produtos alimentícios requeridos pelas leis de cultivo, está patente uma clara contradição.”

A agricultura industrializada não só limita a variedade da comida, mas também coloca no mercado enormes quantidades de comida com valores nutricionais muito baixos. “A comida que está a ser colocada no mercado hoje em dia” observa Nadia El Hage, “não é da mesma qualidade que a colocada antes da Segunda Guerra Mundial; comparada com a de há 60 anos, a maioria dos cultivos perdeu, em média, quase 20% de nutrientes com aumentos até aos 70 ou 90%.”

A comida que consumimos é, assim, cada vez mais deficiente a nível nutricional e potencialmente danosa para a saúde humana devido ao uso de grandes quantidades de pesticidas e de fertilizantes químicos na produção. “Esta estratégia de produção alimentar não ecológica”, reporta o Manifesto, “relacionada com um processamento de comida não saudável e a sua obsessão de manipular as práticas de marketing a nível comercial, criou caminhos propensos a dietas perturbadoras que produzem doenças. A fase de processamento de alimentos também aparenta ser particularmente delicada, considerando a adição de um grande número de químicos.”

A transformação de alimentos é um processo que conta com cerca de três quartos das vendas alimentícias internacionais. Substâncias saudáveis, tais como vitaminas, são geralmente removidas e uma grande quantidade de açúcares e gorduras e conservantes, solventes orgânicos, hormonas, agentes corantes, potenciadores de sabor e outros aditivos alimentares são adicionados regularmente, especialmente quando o alimento tem de viajar milhares de quilómetros e foi processado para aumentar a sua vida nas prateleiras. Os efeitos destes aditivos são frequentemente desconhecidos, enquanto que as suas interações com outras substâncias presentes nos alimentos ainda não foram identificadas.

Os autores do Manifesto afirmam que estes tipos de nutrições, ricas em calorias e pobres em fibras e nutrientes, juntamente com altas gorduras, açúcares e sal estão associadas com uma grande parte de NCD’s, causadas por fatores de risco biológicos tais como : alta pressão sanguínea, altas quantidades de açúcar no sangue, altas quantidades de lípidos no sangue e gordura corporal, que por sua vez torna mais propensa a inflamação de sistemas patológicos, aterosclerose nos vasos sanguíneos, tromboses e induz carcinogénese através de efeitos epigenéticos. Continuar neste caminho, conclui o Manifesto, é considerado “indefesa imoral” e numa análise final, não pode ser definindo de outra forma a não ser como uma falha da nossa civilização.

Pesticidas: os desconhecidos

Neste ponto a questão surge espontaneamente: quando compramos e consumimos alimentos industrializadas no nosso quotidiano, estamos a alimentar-nos ou a envenenar-nos? E acima de tudo, estamos realmente informados acerca da origem e do conteúdo dos alimentos que consumimos e assim livres para escolher o que é melhor para a nossa saúde?

Infelizmente, a escolha não nos cabe a nós. Pelo contrário, em muitos casos, as nossas escolhas são influenciadas por informação errada ou parcial que não deixa explícito quais os riscos associados com uma nutrição pobre. Disponibilizar informação acerca dos verdadeiros riscos e colocar a escolha nas mãos dos consumidores e dos agricultores são alguns dos objetivos do Manifesto “Food for Health”.

O tema dos pesticidas é emblemático porque nem toda a gente tem noção dos seus efeitos prejudiciais no ambiente e na saúde humana. Ainda assim isto não é nenhuma novidade. Já em 2006, o jornal científico The Lancet publicou uma lista de 209 substâncias tóxicas, incluindo 90 pesticidas, que são particularmente perigosos devido aos seus potenciais efeitos negativos no cérebro humano. Pesquisa subsequente confirmou os riscos associados com o uso de agrotoxinas para o corpo humano, sendo que estas podem induzir múltiplas e complexas disfunções em todos os órgãos e sistemas, levando assim a doenças a nível endócrino, nervoso, imunitário, respiratório, cardiovascular, reprodutivo e renal. Os pesticidas podem entrar em contacto com pessoas de várias formas, através do ar, ou através de contacto direto com a pele, mas a maior exposição ocorre através do que comemos e bebemos. Este é um risco para adultos e crianças, mas também para bebés que são diretamente expostos a químicos perigosos através da placenta ou da amamentação. Já foi observado que, particularmente em crianças, existe uma maior probabilidade de dano cognitivo e um maior risco de contrair cancro, especialmente leucemia ou linfoma, quando expostos a estes químicos.

Resumindo, parece que chegou o tempo de usarmos a literatura científica extensa que possuímos e expor o sistema tóxico de produção e pedir uma mudança imediata de paradigma, como argumenta Patrizia Gentilini, membro da Comissão de ISDE Scientific (Internacional Society of Doctors for the Environment) e uma das autoras do Manifesto: “Chegou a altura de parar de mentir aos trabalhadores e cidadãos, e cessar de afirmar que o cancro é causado por mero acaso; os nosso estudos demonstram que o cancro é causado por fatores ambientais, e que os pesticidas aumentam o risco de o contrair”. Não obstante os altos riscos de saúde, que também são pouco conhecidos, consideramos a ausência de qualquer tipo de bio monitoração no nosso território. E não se trata apenas de cancro: “Temos agora evidências de uma forte correlação,” adiciona Dr. Gentilini, “entre a exposição a pesticidas e o constante aumento de doenças como cancro, doenças respiratórias, Parkinson, Alzheimer, esclerose lateral amiotrófica (ALS), autismo, défice de atenção e hiperatividade, diabetes, infertilidade, distúrbios reprodutivos, malformações fetais, disfunções do metabolismo e da tiroide.”

Um dos maiores avisos feito pelos cientistas é que os pesticidas se comportam como desreguladores endócrinos. “Relativamente a desreguladores endócrinos e cancerígenos,” realça novamente Gentilini, “não há limites de segurança.” Assim, os aclamados “limites de segurança” parecem não ter valor, como confirmado pelo relatório mais recente do Instituto Ramazzini, que demonstra como o glifosato, um ingrediente ativo de alguns dos pesticidas mais difundidos usados na agricultura é ainda tóxico, mesmo em doses supostamente “seguras”. Pesticidas baseados em glifosato, independentemente da dose e do tempo de exposição, pode alterar alguns parâmetros biológicos importantes, particularmente o desenvolvimento sexual, genotóxico e do microbioma intestinal.

Não existindo assim “limites de segurança” quando se fala de pesticidas que, mesmo em baixas concentrações, podem causar danos na saúde humana. Mas os riscos não estão limitados a substâncias individuais que são lançadas no ambiente. Os pesticidas que podem ser comprados no mercado são de facto compostos com um ingrediente ativo e o seu auxiliar, declarados pelos manufatores. É essencial realçar que as atuais avaliações a nível tóxico só cobrem a substância ativa declarada pelo manufator. A toxicidade dos auxiliares, incluindo conservantes, diluentes, emulsificantes, e propulsores são propensos a aumentar a toxicidade do produto e não são tidos em conta pelas autoridades competentes. Eles baseiam as suas avaliações, habitualmente, exclusivamente na documentação feita disponível pelo manufator, sem prosseguir nenhum teste adequado independente. O que as instituições responsáveis pelo controlo e autorização de substâncias perigosas não consideram, ou não querem considerem, é o conhecido por efeito cocktail, por exemplo, a interação entre várias substâncias químicas já presentes no ambiente, tal como entre os produtos individuais colocados no mercado.

O resultado deste processo de autorização “científico” é facilmente determinado: o consumidor, que confia na instituição ao encargo dos controlos, que desconhece as falhas dos atuais procedimentos de autorização, é levado a considerar o produto final colocado no mercado como seguro. Um verdadeiro jogo de mãos, assim, onde a realidade é escondida em rótulos tranquilizadores que contêm informações parciais e incorretas. Um jogo perigoso onde colocamos inconscientemente o maior risco da aposta: a nossa saúde.

Entre a propaganda e os falsos mitos: o veneno está servido

Será o atual uso massivo de fertilizantes químicos e pesticidas mesmo necessário para aumentar a produção? Será indispensável alimentar a população em crescimento do mundo ou será unicamente benéfico para os interesses das grandes corporações de negócios agrícolas? Existe uma extensa literatura disponível que expõe como os manufatores alimentam a propaganda para continuar a vender os seus produtos, não ligando ao facto que estes são prejudiciais. A publicidade, como sabemos, é penetrante e convincente, com certeza mais do que o corpo de literatura científica que tem lidado extensivamente com os reais efeitos de agrotoxinas no ambiente e no ser humano. De forma a proporcionar alguma claridade sobre o assunto, é suficiente consultar os mais recentes relatórios UN, começando pela contribuição de Hilal Helver, Relatador Especial da UN no Direito À Comida, e entre os autores do Manifesto. De acordo com Helver, o problema da fome no mundo está mais relacionado com a pobreza, desigualdade e distribuição alimentar, do que com a produção. Além disso, Helver denunciou o descomedido uso de pesticidas, sendo que este está diretamente relacionado a 20,000 mortes por envenenamento, por ano, a nível mundial. Juntamente, de acordo com as estimativas do WHO e UNEP, existem pelo menos 26 milhões de casos de envenenamento por pesticidas no mundo todos os anos que, em muitos casos, leva à morte.

Estas figuras são preocupantes, mas não surpreendentes, considerando o facto que os químicos cobrem a cadeia inteira de abastecimento alimentício, desde o campo até à mesa, onde são apresentados não só em fruta e vegetais, mas também em carne, peixe e produtos lacticínios. De facto, a exposição a pesticidas pode ocorrer de diversas formas, incluindo exposição direta, particularmente entre trabalhadores envolvidos na produção de pesticidas, vendedores e agricultores que os aplicam nos seus campos. Este estádio de processamento também é responsável pela contaminação da nossa comida com plásticos, conservantes, solventes orgânicos, hormonas, potenciadores de sabor e outros aditivos alimentícios introduzidos na nossa comida neste estádio.

A exposição também ocorre através de resíduos à superfície das águas devido ao escoamento agrícola, da contaminação de poços e água do subsolo, e da dispersão no vento devido ao uso de pulverização aérea. Resumindo, não têm de viver apenas a uns metros de uma quinta de monocultura intensiva para se começarem a preocupar, como confirmado pelo recente estudo da contaminação do solo, dirigido pela Comissão do Centro de Pesquisa Conjunto Europeu e a Universidade de Wageninger. De acordo com o estudo, foram encontrados vestígios de pesticidas em mais de 66% das amostras analisadas. As substâncias detetadas mais comummente foram a glifosato (46%), DDT (25%) e produtos fungicidas (24%) que, note-se, podem estar concentrados em partículas muito pequenas no solo, que são facilmente corroídas e transportadas pelo vento e pela água, levando o risco de contaminação ainda mais longe.

Estes dados parecem confirmar o ultimo Relatório Nacional sobre pesticidas nas águas realizado pelo ISPRA, o Instituto Superior da Proteção e da Riqueza Ambiental, que detetou aproximadamente 259 diferentes pesticidas tóxicos em águas italianas. Os resíduos de pesticidas foram encontrados em 67% da superfície aquática monitorizada e em 33,5% de água no subsolo, com uma tendência evolutiva comparada ao mesmo estudo feito em 2003. De acordo com o ISPRA, o glifosato, juntamente com o seu metabolite AMPA, são o herbicida mais presente nas águas italianas: ambas as substâncias, como reportado pelo ISPRA, são em maior quantidade do que o valor permitido pela regulação dos padrões de qualidade ambiental das águas (EQS) a 24,5% e 47,8% respetivamente, dos parâmetros para a superfície de água.

Mesmo sendo verdade que a pulverização de agrotoxinas em Itália excede os 5 kg por hectar – a maior percentagem na UE- devia ser sabido que os dados italianos não diferem muito dos do resto do mundo. Entre os maiores consumidores de pesticidas no mundo está a China, com 1,806,000 toneladas por ano, seguida pelos Estados Unidos com 386,00 toneladas por ano, a Argentina com 265,000 toneladas, a Tailândia com 87,000 toneladas, o Brasil com 76,000 toneladas. Enquanto que o Canadá, com o qual a União Europeia assinou recentemente o controverso tratado de troca CETA, conta com cerca de 54,000 toneladas por ano. Neste ranking específico, Itália destaca-se com uma posição proeminente de 63,000 toneladas por ano, mais do que o consumo anula da India, com 40,000 toneladas.

Source: World Atlas

De acordo com o ultimo FAO e o relatório IWMI, More People, More Food, Worse Water? A Global Review of Water Pollution From Agriculture, a agricultura industrializada é o contribuidor primário de poluição de águas do subsolo a nível mundial. O relatório confirma como a uso massivo de pesticidas e fertilizantes contribui para a contaminação das águas do subsolo, causando em perigo a saúde humana e a do planeta. De facto, a agricultura industrializada é responsável por 96% de emissões de amoníaco no ar que, reagindo com outros poluentes, produz uma fina matéria de partículas muito perigosa. Sumarizando, isto devia ser o suficiente para mudar o modelo de produção imediatamente e ainda assim, a introdução de substâncias perigosas no ambiente não parece cessar. Pelo contrário, de acordo com o relatório do FAO, o uso de fertilizantes está destinado a aumentar por 58% em 2050. Isto não são boas notícias, tendo em conta que hoje 4.6 milhões de toneladas de pesticidas químicos, incluindo herbicidas, inseticidas e fungicidas, são espalhados anualmente em solos agrícolas e que a um nível global, a cada 27 segundos um novo químico é sintetizado. Além de mitos e propaganda, os resultados de análises científicas de laboratórios de todo o mundo parecem concordar com o conselho, confirmando a urgência expressa no Manifesto: que não podemos ter mais venenos nas nossas mesas.

É tempo de mudar os modelos de produção na direção de uma nutrição saudável e livre de venenos

Na área de uma boa nutrição, o quão importante são as escolhas pessoais para levar uma vida saudável? Elas são certamente muito importantes, mas deve ser reconhecido que nós não somos sempre livres de fazer as escolhas corretas. As nossas escolhas são condicionadas por muitos fatores externos que as tornam menos livres do que o que pensamos. Os processos de estandardização de comida, juntamente com um marketing agressivo, má informação, falta de transparência na cadeia de abastecimento, e também os abastecimentos disponíveis no Mercado e as políticas de preços impostas por oligopólios, são alguns dos fatores que condicionam a nossa habilidade de escolher livremente. Por esta razão, o Manifesto “Food for Health” não é só direcionado para produtores e consumidores individuais, mas também para os governos, que são responsáveis pelo bem-estar dos seus cidadãos e são guardiões dos seus direitos. A cooperação entre cidadãos, agricultores, universidades, investigadores e instituições aparenta ser um elemento essencial para uma mudança de paradigma.

Uma transformação urgente sem compromissos é necessária, tal como realça Patrizia Gentilini: “Nós podemos proteger a nossa saúde através da comida que consumimos e tendo acesso a comida saudável, rica em todos os nutrientes e substâncias que protegem a nossa saúde e, tanto quanto possível, livre de resíduos perigosos, seja contaminadores ambientais, ou resíduos de agricultura química, especialmente pesticidas. Chegou a altura para mudarmos o modelo agrícola e, como sempre enfatizamos, falar sobre o uso sustentável de pesticidas como oximoro, pois os pesticidas são substâncias venenosas e tóxicas, desenhadas e estudadas a causar danos a outras formas de vida, e, assim, são obviamente perigosas para nós também.”

O sistema extrativo, poluente e linear de produção deve, então, sere substituído principalmente por uma economia circular que respeita os direitos das pessoas e o ambiente. O nosso planeta funciona numa forma circular e pode ser brevemente levado à exaustão se o atual sistema de produção linear não for revertido. Muitas boas práticas já foram testadas e mostram que existem alternativas, que podemos colocar em prática, independentemente da vontade política. Este é o caso de sistemas de produção de pequenas cadeias de abastecimento e de zero km de mercados de agricultores, que demonstraram ser soluções viáveis para o desperdício de comida, a emissão de gás efeito estufa, de pegadas ecológicas, e disparidades de riqueza. Produtores locais de tamanho pequeno ou médio também podem ter um papel importante na conservação da biodiversidade, e, assim, enriquecer as nossas nutrições, ao conservar variadas sementes indígenas e protegendo-as de mercados agrícolas a transbordar de sementes caras cujos donos são multinacionais.

As organizações supranacionais também podem ter um papel chave na estimulação da mudança. Este é o caso de FAO, que recentemente reconheceu que a agroecologia contribui diretamente para alguns dos mais importantes Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (SDG’S), incluindo acabar com a pobreza, a fome, assegurar educação de qualidade, alcançar a igualdade de género, aumentar a eficiência do uso de água, assegurar o consumo e a produção sustentável, fortalecer a resiliência climática, assegurar a segurança e sustentabilidade do uso de recursos marinhos e a segurança da biodiversidade.

A agroecologia, cujo objetivo é a visão da vida baseada no conceito de integração entre a espécie humana e a natureza, pode dar um impulso para um novo modelo de produção que preserva a biodiversidade e que promove a sustentabilidade ambiental: “O FAO”, realça Ruchi Shroff, o diretor da Navdanys Internacional, “reconheceu a importância do conhecimento tradicional dos agricultores e o seu papel crucial na frente de segurança alimentar. O que os pequenos produtores e consumidores devem recuperar é o novo paradigma agrícola e económico, a cultura da comida pela saúde, onde cada responsabilidade económica e justiça ecológica têm prioridade face aos atuais sistemas de consumo e produção extrativa baseada no lucro.”

É, então, tempo de entrar numa fase de transição de um modelo de agricultura industrial baseado na competição, para um modelo ecológico regenerativo baseado na cooperação e no uso ético de novas tecnologias. A revelação dos interesses económicos que manipulam o conhecimento e a ciência de forma a esconder os verdadeiros custos das suas atividades e da sua extensão no controlo de mercado, dos nossos alimentos, e, assim, da nossa saúde, é apenas o primeiro passo necessário se queremos reconstruir o conhecimento de um sistema baseado na defesa da biodiversidade e do bem comum. Este é um passo necessário para reivindicar os nossos direitos democráticos e parar o movimento que está a ameaçar levar o planeta inteiro a um colapso. O Manifesto “Food for Health” é uma ferramenta de referência para todos os acionistas da agricultura e da alimentação e para cidadãos vulgares que querem estar informados, ao perceberem os reais interesses por de trás das atuais políticas de produção alimentar, e finalmente, se empenhar diretamente num movimento civil para uma mudança de paradigma baseada nos direitos do ambiente e do ser humano. Porque, tal como Vandana Shiva recorda, “A saúde das pessoas e a saúde do planeta são uma só.”

*Tradução feita em Português de Portugal


Translation kindly provided by Silvia Tavares


The original article was first published in Italian in  Terra Nuova magazine, September 2018