Home > Destaques > Uma Revolução Simples: Um Imperativo Ecológico e Ético para Proteger a Vida na Terra e Garantir Justiça a Todos os Seres

De Dr. Vandana Shiva

* Dia Mundial da Simplicidade, 12 de julho 2020

“Vive de forma simples para que os outros vivam simplesmente. A simplicidade é a essência da universalidade”. Mahatma Gandhi

1. A simplicidade ajuda a proteger o Planeta e a criar justiça ecológica e económica

“A sabedoria da vida consiste na eliminação das coisas não essenciais.” Lin Yutang

“Fora do caos encontra a simplicidade” Albert Einstein

A crise do Covid 19 e o confinamento tem tido altos custos sociais e humanitários em termos de perdas de vida e o aumentar da crise da fome, a perda de sustento e de emprego.

Mas é também uma chamada de atenção que nos recorda que somos “Uma Humanidade num Planeta”. O confinamento obrigatório cria uma oportunidade para reduzir a nossa pegada ecológica, vivendo dentro dos limites ecológicos, e observar levemente o futuro, aceitando toda a vida com o conhecimento que, embora diferentes, estamos interligados.

O confinamento devido ao Corona forçou-nos a abandonar o caos e a velocidade da vida e fez um convite à humanidade para fazer a distinção entre o essencial e o não essencial.

Fazendo-nos ficar em casa, a crise cria a possibilidade de perceber que não importa quem somos, onde estamos, somos membros de uma Família Terráquea e partilhamos uma casa comum, a nossa linda Terra. Fazemos parte da Natureza e não estamos separados, nem somos superiores a esta.

Viver na terra com outros seres faz com que a simplicidade (perdendo a desordem) seja uma obrigação ecológica e ética. Ao levar simplesmente o que precisamos para sustentar a nossa vida, ao viver entre os limites ecológicos e planetários, deixamos espaço vital ecológico para outros seres.

Todos os seres necessitam da sua parte do espaço ecológico e do seu direito de participar no sistema de vida, que garante comida e água para todos. Ao extrair mais da Terra, estamos a ultrapassar os limites da nossa parte desse espaço, a ultrapassar os limites planetários e ecológicos, tal como a integridade da espécie. Na teia da vida as espécies sustentam-se umas às outras. Sustentabilidade e justiça estão interligadas, e roubar aos outros a sua parte do espaço retira-lhes as suas necessidades básicas, aumentando a crise de comida e água, a pobreza, a fome e a desnutrição.

A terra está a ser levada ao limite pela ganância – empresas gigantes a fazer lucros enormes ao custo da natureza e das pessoas, e cidadãos vulgares que participam cegamente enquanto “consumidores” na economia da ganância que poluiu a terra e a atmosfera, contribuindo para a destabilização dos processos autorreguladores, através dos quais a Terra mantém a biosfera e o sistema climático.

Utilizar mais do que a nossa parte do espaço ecológico, indiferente aos direitos dos outros e dos Direitos da Natureza, é considerado o conceito de “extrativismo” – um crime ecológico e ético. O Extrativismo foi “neutralizado”, o conceito, durante 500 anos de colonialismo, 300 anos de industrialização fóssil, e algumas décadas de globalização empresária, que é de facto uma recolonização.

Enquanto os movimentos pela justiça e pela descolonização aumentam a nível mundial durante estes tempos de Corona vírus, recordem-se que as raízes da emergência de saúde, ecológica e económica (de uma desigualdade brutal) são as mesmas – ganância, poder e a extração do espaço dos outros.

A pobreza e a fome são um produto do colonialismo. Os Britânicos apropriaram-se de 45 trilliões de dólares dos camponeses da Índia e transferiram-nos para Inglaterra, levando mais de 60 milhões de indianos à fome.

A pobreza e a fome são um resultado exclusivo das práticas egoístas que anexam terras comuns, florestas e pastagens, sementes e biodiversidade para acumular riqueza.

A pobreza e a fome são um resultado de um sistema globalizado, extrativista de agricultura industrializada que extrai a fertilidade do solo, provinda de agricultores trabalhadores, deixando-os depois em dívida e sem posses, levando-os ao suicídio. Extrai vida de espécies que estão a ser levadas à extinção. E extrai saúde.

A crise do corona vírus é um produto do extrativismo.

A pobreza, a fome e doenças crónicas são as consequências da ganância das empresas que usam venenos e químicos para criar comida e para a processar. Há agora uma tentativa de fazer Comida Falsa e Comida Artificial em laboratórios e patentear cada passo do processo que irá contribuir para as novas avenidas do extrativismo e agravar a crise da fome e de saúde.

Cada passo em direção a uma maior extração, a uma maior manipulação, a uma maior concentração cria uma maior procura dos recursos da Terra, e nega a parte justa do espaço ecológico de outras espécies e pessoas. Gandhi relembra-nos que “A terra tem bens suficientes para todos, mas não para a ganância de alguns”.

Deveríamos aproveitar os presentes da terra através da renúncia, não através da ganância de posse e de extração.

No “Less is More”, Jason Hickle mostra-nos que num mundo interligado ecologicamente, “menos é mais”.

2. A simplicidade reduz a nossa pegada ecológica e aumenta a nossa eficiência ecológica: Num mundo interligado “menos é mais”

“A simplicidade é a alma da eficiência” Austin Freeman

Eficiência deriva de fazer, de ser efetivo. Como cidadãos da terra somos efetivos quando cocriamos com a terra, quando participamos nos seus ciclos de vida de acordo com as suas leis para nos fornecer os nossos bens sem privar os dos outros.

A simplicidade é ecologicamente eficiente, pois permite a produção de cada vez mais seres, usando menos recursos e energia. A “eficiência” é um termo usado em demasia e mal-usado no contexto de um uso desajeitado e ineficiente dos recursos e da energia no industrialismo como sistema de produção. A destruição pela agricultura industrializada de pequenas quintas foi justificada devido à sua “eficiência”. Numa teia de vida frágil e interligada, isto é, pseudo eficiência. 

Substituir os sistemas de produção bio diversos com monoculturas nas florestas e quintas é denominado de eficiente. Extrair mais água do que pode ser regenerada e renovada nos nossos rios e no chão é definido como eficiente. Destruir economias artesanais e de ofícios que produzem alimentos e têxteis de grande qualidade, para produzir comida de plástico e roupa de qualidade inferior, com trabalhadores em linhas enormes em fábricas com um enorme consumo de energia e de recursos foi justificado pela eficiência. Agora a Robótica e a Inteligência Artificial está a ser promovida e a substituir os empregados em fábricas, professores nas escolas. O E-comércio está a substituir o sustento de pequenas lojas e pequenos revendedores ao industrializar a distribuição justificando como sendo eficiência.

A economia linear extrativa é baseada na extração, no sistema de compra e venda, nos lucros sem limites. Ao interromper a renovação dos ciclos ecológicos, cria escassez, desperdício e poluição. Não tem espaço para o cuidado da natureza e da comunidade (a palavra “economia” é derivada da palavra grega para casa, Oikos, e significa cuidado e gestão da nossa casa). Não tem espaço para a ética da solidariedade. Esta economia extrativa deixa a natureza e a sociedade empobrecida: seja a extração de minerais, ou a extração de conhecimentos através da Biopirataria, ou a extração de “genes” através da mimica genética, ou a extração de dados pessoais através da mímica de dados, ou a extração de rendas e direitos de autor para sementes, água, comunicação, educação privada e sistema de saúde. Cria pobreza, dívidas e deslocamento. Cria desperdício – desperdício como a poluição, o desperdício de recursos, de pessoas, de vidas. Cria um mundo sem trabalho, mas imagina que as pessoas sem trabalho serão todas “consumidoras” de comida de plástico, de roupa de má qualidade, de comunicação de má qualidade. É a máquina extrativa de dinheiro que levou a um aumento do 1% e à descartabilidade dos 99%.

O extrativismo linear cria a ilusão de “mais” na realidade de “menos” para a natureza e para a sociedade. Substituir a reciclagem de matéria orgânica para a fertilidade do solo, por fertilizantes artificiais, o querer mais, destruiu a biodiversidade, levou à exaustão do solo e da água, desertificou a terra, criou zonas mortas no oceano e contribuiu para o aumento do gás de efeito de estufa e para as alterações climáticas.

O industrialismo, o extrativismo e as monoculturas escondem os custos reais para a terra e para a sociedade da agricultura industrializada. A grande pegada ecológica nos recursos e na energia que levou ao colapso de ecossistemas e de sociedades é tornada invisível, a destruição do solo, da água e da biodiversidade são consideradas externalidades cujos custos nascem através de outras espécies e através dos pobres. A pseudo eficiência cria escassez. Na natureza esta escassez, criada pela extração acima dos limites permitidos ecologicamente, está na base da crise ecológica. Na sociedade, o extrativismo que rouba os recursos e os sustentos às pessoas, é a base das crises de fome, de pobreza e de expropriação. 

Uma métrica ilusória que tem sido usada para impor a agricultura industrializada ineficiente e causadora de desperdício é o “Rendimento por Acre”. O “Rendimento por Acre” não nos diz nada acerca do estado a terra, ou da biodiversidade, ou da água, ou o estado em que o sistema de agricultura deixa o agricultor. Também não mede o resultado total de biodiversidade, a qualidade da comida, ou os recursos e energia usados. Só mede o peso nutricional inexistente de mercadorias tóxicas, mesmo que estas sejam usadas como material cru para biocombustível e alimento animal. (Vandana Shiva, Who Really Feeds the World, Women Unlimited, North Atlantic, Feltrinelli, Capitan Spring). 

A máquina de dinheiro extrativista explora recursos reais, vê as pessoas reais como entradas e transforma-as em mercadoria para troca e em desperdício para ser despejado – natureza e pessoas desperdiçadas.

E no lugar de ter em consideração os recursos, os químicos, a energia, e o capital que são os resultados da agricultura industrializada, apenas consideram “pessoas”, “agricultores”, “trabalho” como resultado.

Os verdadeiros agricultores estão ligados à agricultura no seu significado original – “amor pela terra”. Quando estes praticam uma agricultura ecológica, orgânica, eles produzem comida nutritiva e bio diversa, sendo esta necessária para a saúde, eles também regeneram a saúde da terra, do solo, da biodiversidade. Agricultores naturais e ecológicos são cocriadores nos sistemas de comida real. Não são resultados crus e fixos.

As medidas e métricas da pseudo eficiência e da pseudo produtividade são cegas a alternativas para a agricultura industrializada, tornando inevitável uma guerra contra a terra e os agricultores.

Mas realmente existem outras alternativas, e são ecologicamente eficientes.

Navdanya substituiu o “Rendimento por Acre” por “Saúde por Acre” e “Nutrição por Acre”. Com a alteração da falsa e enganadora métrica da agricultura industrial, torna-se possível ver que a conservação da biodiversidade está na base da segurança alimentar. As monoculturas químicas produzem menos nutrição no solo para humanos, e outros seres. Se mudarmos o paradigma e a métrica, podemos ver que proteger a natureza, reduzir a nossa procura de recursos e energia, é a única forma de produzir nutrição suficiente para todos. [1]

80% da comida que ingerimos no nosso quotidiano vem de pequenas quintas. Através dos jardins e pequenas quintas podemos garantir 100% de comida real e saudável. Não só seria acessível a toda a gente, como ninguém teria de passar fome quando se produz mais nutrição por acre. 75% da terra que está a ser degradada pela agricultura industrial, para produzir apenas 20% de comida de má qualidade, pode retardar a regeneração de florestas, de ecossistemas, de pastagens. As invasões das florestas da Amazónia e da Indonésia pelo negócio agrícola mundial para produzir mercadorias deve cessar, para que as florestas possam pertencer aos povos indígenas e outras espécies que nelas habitam.

Sendo que os sistemas de agricultura ecológica trabalham com a natureza, e não contra as suas leis, estes regeneram a capacidade da terra de nos nutrir e aumenta a eficiência ecológica. Ao usar uma unidade do resultado de energia externa, produzimos dez unidades de comida boa e saudável. 

Enquanto que, por outro lado, a agricultura industrializada que é considerada “eficiente” usa 10 unidades de energia para produzir uma unidade de comida. A agricultura industrial que é considerada “eficiente” necessita de 100 unidade de proteína para produzir uma unidade de proteína animal. Animais são cingidos a um local pequeno, mas isto esconde a sombra dos acres que geram soja GMO para alimentar animais em sistemas de agricultura industrializada. O mesmo se aplica à aquacultura. 

Amory Lovins usou o tempo “Escravos energéticos” para o uso às escondidas de energia nos sistemas ineficientes industriais e em sociedades industriais que substituem a produção centrada nas pessoas. De acordo com Lovins, um Americano normal, em 1975 tinha 250 vezes mais escravos energéticos do que um Nigeriano. “Relativamente ao local de trabalho, sendo a população da terra não 4 biliões, mas sim 200 biliões, o ponto importante é que cerca de 98% deles não ingeriam comida convencional”. (Amory Lovins, Estratégias Energéticas Globais, Londres, 1975). 

Com a atual população de 7.7 biliões de pessoas a viver sobre uma industrialização forçada e uma digitalização intensiva de energia, a população de “escravos energéticos” conta com mais de 3.35 triliões de pessoas. Cada passo na substituição de pessoas reais por 250 escravos energéticos está a levar à crise climática, à destruição de florestas e da biodiversidade, à crise de desemprego, à destruição dos agricultores, e à descartabilidade das pessoas. A terra e a sociedade não podem continuar a levar este peso insuportável dos sistemas industriais de pseudo eficiência. 

A Pseudo Eficiência esconde uma pegada ecológica inteira de um sistema de produção. Esconde os custos reais através de externalidades e subsídios. Escolhe um pequeno fragmento de tecnologia de um sistema total e apresenta-o como mais eficiente, mesmo que o sistema em si seja bruto, violento, ineficiente e destrutivo. (Vandana Shiva, Violência da Revolução Verde, Vandana Shiva et al, Sobrevivência Ecológica e da Política). 

Tal como Navdanya mostrou durante 3 décadas de prática e pesquisa, “Menos é mais” em sistemas alimentares. 

Nós podemos, nós devemos reduzir a nossa pegada ecológica e aumentar o nosso coração, a nossa mente e as nossas mãos para fornecer as nossas necessidades ao regenerar a terra. 

Num mundo interligado ecologicamente, quanto menos tirarmos e quando mais dermos à natureza e à comunidade, mais teremos.

3. A simplicidade permite a transição do extrativismo numa economia circular de solidariedade baseada no amor, na compaixão e na dádiva. 

“É ao dar que recebemos.” St. Francis

“Relembro-me 100 vezes ao dia que a minha vida interior e exterior depende do trabalho dos Homens, vivos e mortos, e que eu devo exercer-me de forma a dar a mesma medida que recebi e que continuo a receber.” Albert Einstein.

A consciência de que somos membros de uma Família Terráquea independente, relacionados uns com os outros, e dependentes uns dos outros faz com que a compaixão seja natural. Quando não vemos os outros como objetos ou como material cru a ser explorado, mas como relações, como membros da nossa família, o nosso primeiro impulso é cuidar, partilhar e dar.

E recebemos em troca também. As nossas necessidades são recebidas como um presente. Tais economias de presentes e economias de cuidado são a base da economia da natureza. São a base de todas as economias indígenas. E são a base das novas economias de cuidado e solidariedade que estão por todo o lado.

O extrativismo fez-nos imaginar que fazer lucros é a economia. Aristóteles chamou-a de “Chresmatistics”, a arte de fazer dinheiro. Ele diferenciou-a de Oikonomia, a arte de viver. A arte de viver é acerca de nutrir a vida – a vida de todos os seres da terra, incluindo a nossa família humana. A arte de viver está a criar e a participar nas economias vivas que sustentam a vida. A vida cria economias vivas cuja base é a ética de São Francisco que “É ao dar que recebemos”.

Na agricultura orgânica e ecológica consideramos o princípio de dar e receber como a “Lei do Retorno”. Nós estamos a participar no ciclo da vida.

Economias vivas são, assim, economias circulares que são baseadas nos ciclos conscientes da natureza, e o nosso dever é dar à terra o necessário para esta manter e regenerar os seus ciclos. A terra dá-nos comida. Quando damos parte do seu presente orgânico de volta à terra, estamos a agir de acordo com a lei do retorno e a criar uma economia circular do ciclo nutritivo, estamos a sustentar a teia da comida que é a teia da vida. Quando devolvemos matéria orgânica à natureza, como alimento para os organismos dos seus solos, ela continua a fornecer-nos comida. O ato de devolver faz parte do nosso trabalho, da nossa gratidão, da nossa unicidade. Dar-nos comida é o trabalho complexo da natureza – através da sua teia de comida do solo, da sua biodiversidade, da sua água, do sol, do ar.

A terra dá-nos sementes. Os nossos antepassados cocriaram com ela para multiplicar a sua diversidade. Quando temos a semente, e a cultivamos como um presente para a terra, ela reproduz e multiplica-a. Quando partilhamos as sementes nos bens-comuns, nasce a soberania das sementes, a soberania da comida.

A terra dá-nos água. Quando conservamos água, estamos a trabalhar com a oikonomia de dar e criar uma economia circular do ciclo hidra ecológico, estamos a criar economias de dar e partilhar.

Todas as crises ecológicas são a rutura nos ciclos de nutrição, de água, de vida da natureza – e a transgressão dos limites planetários.

Numa economia circular nós devolvemos à sociedade. A saúde é partilhada. A saúde circula. Numa economia circular a saúde não se foca em algumas mãos. A saúde não é explorada, criando a polarização do 1% em 99%.

E a precariedade das condições de vida dos 99% criou uma nova classe cuja Guy Santing chama de “Precariado”. Se a revolução industrial nos deu uma classe trabalhadora industrial, o proletariado, a globalização e o “mercado livre” que está a destruir os sustentos dos camponeses na India e na China através do roubo de terras, e das probabilidades da segurança económica para os jovens, os países ricos industrializados criaram uma classe global dos precariados. Com o confinamento podemos estar a criar uma grande classe de pessoas descartáveis.

A economia circular reabastece a natureza e a sociedade. Cria o suficiente para todos e o bem-estar para todos. Ao cuidar da terra e da sociedade é possível realizar um trabalho diverso, significativo e criativo. É baseada na lei do retorno da natureza. Na natureza não há desperdício, nem poluição.

Quando as economias são circulares, cada ser vivo, cada local, é o centro da economia, da natureza e da sociedade que desenvolvem e emergem de sistemas múltiplos auto-organizados, como os triliões de células no nosso corpo.

Economias circulares tal como economias vivas são por natureza bio diversas, abrangendo o intimo e o local, o global e o planetário.

4. A simplicidade contribui para o bem-estar e felicidade para todos através da consciencialização do “Unicidade” e “Suficiente”.

“Simplicidade, Simplicidade, Simplicidade! Somos felizes em proporção com as coisas com as quais conseguimos viver sem”. Henry David Thoreau
 

“O Budismo ensina que a alegria e a felicidade surgem através do deixar ir… Existem coisas às quais nos temos agarrado que não são uteis e nos privam da nossa liberdade. Encontra a coragem de as deixar ir.” Thich Nhat Hanh 

A felicidade não reside na posse de coisas: a felicidade reside no contentamento do coração. Quando sabemos que chega é chega, temos sempre o suficiente; e quando não sabemos que chega é chega, não importa o quanto temos, nunca é o suficiente. Satish Kumar

O extrativismo e o consumismo criaram a ilusão que o quanto mais usarmos os recursos para produção e consumo ilimitado, quanto mais acumularmos, quanto mais temos, mais felizes seremos. Há muitos anos, vi um painel publicitário que dizia “Vende-se Felicidade” à frente de novos shoppings que estavam a ser construídos em Gurgaon.

Mas a felicidade não pode ser comprada. O bem-estar não é uma mercadoria.

O modelo dominante económico é baseado no crescimento ilimitado num planeta limitado, e isto está a ultrapassar o uso humano dos recursos da terra. Está a levar a uma catástrofe ecológica.

Está também a levar a um roubo intenso e violento de recursos da terra pelos ricos através dos pobres. O roubo de recursos é um ajuste pelos ricos e poderosos para reduzir a base de recursos – terra, biodiversidade, água – sem ajustar o antigo paradigma de crescimento intensivo e ilimitado de recursos à nova realidade. O seu único resultado poderá ser escassez ecológica para os pobres a curto prazo, com o aumentar da pobreza e da privação. A longo prazo significa a extinção da nossa espécie, tal como uma catástrofe climática e a extinção de outras espécies, tornando o planeta inabitável para sociedades humanas. A falha a fazer um ajuste ecológico aos limites planetários e à justiça ecológica é uma ameaça à sobrevivência humana.

O ajuste é obrigatório. Contudo, existem diferentes caminhos que estão a ser propostos. Existe o Ajuste Estrutural imposto pelos ricos que é referido como “austeridade”. A austeridade forçada baseada no antigo paradigma extrativista que permite que o 1% dos super-ricos, os oligarcas, os bilionários, roubem os recursos do planeta enquanto impedem que os 99% tenham acesso a estes, a sustentos, a empregos e a muitas outras formas de liberdade, democracia e segurança económica.

Os ricos, os bilionários, as empresas e as instituições controladas por estes estão a tentar impor um ajuste que leva a terra, os pobres, e os trabalhadores a pagar. Eles querem desmantelar os direitos dos trabalhadores, os direitos humanos e as leis que protegem o ambiente. Eles querem desregular o comércio e a ganância. Eles querem privatizar os bens públicos, as mercadorias, as patentes, financiar a natureza e os seres humanos.

Isto vai levar o mundo a um colapso ecológico e económico.

Existe outro paradigma a emergir que é partilhado por alguns governos e novos movimentos dos 99%, o paradigma voluntário da simplicidade, de reduzir a nossa pegada ecológica enquanto aumentamos o bem-estar humano para todos. No lugar de austeridade forçada que ajuda os ricos a ficar super-ricos, os poderosos tornam-se totalitários, escolher a simplicidade permite-nos ajustar-nos ecologicamente, reduzir o consumo dos recursos do planeta, e partilhar os recursos igualmente como bens, de modo a que ninguém seja negado das suas necessidades básicas de comida ou água. Escolher a simplicidade permite que nos ajustemos social e politicamente para alcançar a democracia e defender a nossa vida e liberdade que são indivisíveis. A simplicidade como escolha consciente ecológica, económica e social cria um caminho para o ajuste económico baseado no respeito dos limites planetários e ecológicos, baseado na justiça e igualdade, baseado na reivindicação das mercadorias e a resistência ao enclausuramento.

A pessoas estão a procurar a democracia terráquea, baseada na liberdade e no bem-estar para todos os seres. As pessoas estão a defender regulações para prevenir o roubo de recursos naturais e de bens públicos. Estão a exigir que os ricos paguem impostos. Que aqueles que estão a causar dano à Natureza sejam considerados culpados por Ecocídio – Crimes contra a Natureza e a Humanidade. [2]

As pessoas querem um fim ao Enclausuramento de bens comuns e a coleta de rendas a pessoas face aos bens públicos que lhes pertencem.

A pessoas estão a reivindicar e a regenerar a biodiversidade dos bens comuns, da água, da terra, da comida, da saúde, do conhecimento, da comunidade, da democracia.

A austeridade forçada faz com que os pobres e as famílias trabalhadoras tenham de pagar pelos excessos da ganância ilimitada e da acumulação dos super ricos. Escolher simplicidade cessa esses excessos e permite-nos florescer numa democracia terráquea onde os direitos e liberdades de todas as espécies e pessoas são protegidos e respeitados.

A simplicidade contribui para a regeneração da Terra, do seu solo, da sua água, da sua biodiversidade, conservando assim a natureza e deixando mais para gerações futuras. A simplicidade na produção é autoaprovisionamento, a autoconfiança, a autonomia das pessoas (Swadeshi). Ao regenerar os sistemas vivos e a biodiversidade, a simplicidade contribui para a liberdade das entradas externas e dos controlos externos. Ao não depender em entradas externas de capital, químicos, recursos e energia, não desperdiça recursos, não polui, não destrói a capacidade de regeneração da natureza ou o potencial criativo das pessoas. E não encurrala as pessoas em ciclos de dívida e de expropriação. Cria a possibilidade de emergir o local, o vivo, o circular, as economias solidárias. 

A simplicidade é a base da liberdade, desde pessoal a política, de local a planetária. Cria liberdade da dependência e do controlo através de auto-organização, de autorregulação e de autodeterminação (Swaraj). Permite-nos criar democracias vivas e participativas que são a Base da Democracia Terráquea.

Os sistemas de alimentação industriais baseados em combustíveis fosseis e químicos são uma ilusão de crescimento ilimitado, e sem limites na natureza ou na sociedade é uma emergência planetária. Está também a falhar ao alimentar as pessoas. Um bilião de pessoas passa fome. Duas milhões estão doentes devido à comida industrializada que se relaciona com doenças crónicas. Este sistema está também a destruir florestas e a criar novas doenças infeciosas como Corona, Sars, Mers, Ébola…

Hind Swaraj Gandhi criticou a civilização industrial baseada em combustível fóssil, dizendo que “Esta civilização procura aumentar o conforto físico, e falha miseravelmente ao fazê-lo”. 

A rápida explosão de alimento industrial baseado em doenças crónicas como obesidade, diabetes e cancro são a falha da agricultura industrializada que tem como objetivo fornecer conforto físico, saúde e bem-estar.

Gandhi também previu que “Esta civilização é tanta que basta ser paciente para se ser auto-destruído”.

Estamos a passar por um período acelerado de autodestruição pela civilização industrial baseada em combustíveis fósseis, através da destruição ecológica do planeta.

O IPCC avisou que temos 10 anos para limitar a catástrofe das alterações climáticas.

Tal como mostra o meu livro Solo, não Óleo e outros relatórios, 50% das emissões de gás de efeito estufa que estão a levar ao caos climático, derivam do sistema de comida industrial baseado em combustíveis fosseis e químicos e guiados pela ganância. (Vandana Shiva, Soil Not Oil).

E as mesmas tecnologias desinteressadas e violentas que estão a poluir a atmosfera, estão também a degradar a terra e a levar espécies à extinção.

De acordo com o Seminário Intergovernamental sobre Serviços de Biodiversidade e do Ecossistema (IPBES), cerca de 1 milhão de espécies de animais e de plantas estão a ser ameaçadas de extinção, muitas dentro de décadas, mais do que alguma vez registado na história humana. [3]

200 espécies estão a ser levadas à extinção todos os dias.

Insetos e pássaros estão a desaparecer rapidamente. Estamos a viver durante a sexta extinção massiva. E podemos estar entre as milhões de espécies que desaparecerão se não mudarmos o extrativismo e a grande e desajeitada pegada ecológica, em economias de cuidado, mudar a ganância pela solidariedade, mudar a violência pela não violência nas nossas mentes e nas nossas práticas.

O aviso dado pelos cientistas hoje, foi dado por Gandhi há um século.

Ilusões como GDP têm sido impostas impiedosamente e sem esforços na humanidade levando-nos a violar os limites ecológicos da terra, da sociedade, os limites éticos estabelecidos pela dignidade e igualdade humana.

O GDP (PIB,  Produto Interno Bruto) é uma mentira.

O GDP mede o que é extraído e trocado para lucro, não o que é produzido e consumido por necessidades essenciais básicas, e não a nutrição e a água, os recursos e energia a circular na natureza para sustentar os ciclos e sistemas ecológicos. Uma ilusão e um constructo vestido como um número não o torna “neutro”. O GDP tem uma relação extrativa de uma direção com a natureza e a sociedade, com a economia da natureza e a economia do sustento e cuidado.

O “Crescimento” está a levar à destruição ecológica e à criação de pobreza, o que não é medido no GDP. [4]

Em economias reais, a vida cresce e floresce, a biodiversidade, as plantas, os organismos dos solos, as comunidades, as crianças, o bem-estar e a felicidade crescem.

Em todo o mundo há um questionamento do GDP enquanto medida.

Buthan mudou de Gross Domestic Product (Produto Interno Bruto) para Gross National Happiness and Well Being (Felicidade Interna Bruta).

Uma comissão comandada por Joe Stiglitz e aconselhada por Amartya Sen foi criada pelo presidente francês Nicola Sarkozy para examinar os limites do Gross Domestic Product (GDP). O relatório final da comissão sobre a medida da performance económica e do progresso social pediu melhor informação e medidas mais ricas do que o GDP para guiar as políticas económicas, para avaliar o progresso social e para considerar que outras medidas deveriam ser usadas para avaliar a qualidade de vida. [5]

A Nova Zelândia criou um “orçamento do bem-estar” dando prioridade ao bem-estar face ao crescimento económico. [6] [7]

Nós podemos, como cidadãos da terra, sair das prisões dos constructos enganadores dos poderosos, tais como o GPD que esconde a ganância ilimitada. Podemos voltar à Terra, e através da nossa Terra, viver o nosso potencial total humano com outros seres.

Num mundo vivo interligado, a simplicidade mostra-nos o caminho para a satisfação, a felicidade e o bem-estar sem violar os direitos dos outros. O nosso significado e satisfação na vida deriva do “ser” e não do “ter”, das relações ou do cuidado, da compaixão e mutualidade, não da acumulação de “coisas” ou da violenta apropriação de riqueza dos outros.

A simplicidade é a consciência e o conhecimento da “unicidade” e do “suficiente”.

“Suficiente” é experienciar a liberdade que é inclusiva da liberdade de todos os seres e pessoas. 

“Suficiente” cria as condições de paz, tanto paz com a natureza como paz entre pessoas. A ganância leva a conflitos de recursos, a guerras com a terra e contra pessoas. 

“Suficiente” é preocupar-se com a terra e com a sociedade o que cria o imperativo de partilhar, de reaver bens comuns. Partilhar é a cultura da paz. 

“Suficiente” é a base da democracia terráquea e da cidadania da terra. 


*Tradução feita em Português de Portugal


Translation kindly provided by Silvia Tavares


[1]https://www.navdanya.org/attachments/Health Per Acre.pdf

[2]https://www.stopecocide.earth/press-releases-summary/french-citizens-assembly-votes-to-make-ecocide-a-crime-

[3]https://ipbes.net/news/how-did-ipbes-estimate-1-million-species-risk-extinction-globalassessment-report

[4]http://www.kontext-tv.de/en/broadcasts/vandana-shiva-how-growth-creates-poverty-and-climate-chaos

[5]https://ophi.org.uk/sarkozy-commission-appeals-for-better-data-and-stronger-measures/

[6]https://theconversation.com/new-zealands-well-being-budget-how-it-hopes-to-improve-peoples-lives-118052

[7]https://www.forbes.com/sites/jamesellsmoor/2019/07/11/new-zealand-ditches-gdp-for-happiness-and-wellbeing/#35fbb2221942